25.4.04



Um dia, trinta anos atrás

Era uma quinta-feira como outra qualquer. Uma semana antes tinha feito os meus vinte anos e estava numa fase descomplexada da vida. Como hábito, a minha mãe chamava-me às sete (menino mimado) para me preparar para entrar a horas em mais um dia de trabalho. Coisa que raramente cumpria mas que, naquele dia, conseguiria surpreender tudo e todos.
Aquele despertar não era igual ao dos outros dias. Vergada pelos tempos de sofrimentos e cansaços muitos, ainda não batiam no relógio as ditas sete quando, entrando pelo quarto alvoraçada, ecoaram pela voz dela palavras mágicas: “ Meu filho, não podemos sair de casa. Há qualquer coisa na rua...”
Uma mola gigantesca tirou-me da cama num abrir e fechar de olhos. Ainda meio ensonado, fui ouvir as notícias que a Rádio estava a transmitir e senti-me algo estranho ao ouvir os comunicados que, repetidamente, soavam como alertas à minha jovem rebeldia. Sem pequeno-almoço tomado desci o Lavra ainda ouvindo os protestos e gritos de aviso da minha progenitora daquela casa no Campo de Santana onde nasci. Depressa me vi nos Restauradores direito ao Rossio para subir as Escadinhas do Duque, ou a Calçada do Carmo, (era à escolha) em direcção ao Largo Rafael Bordalo Pinheiro, 28, o local do meu trabalho. Entretanto, no Carmo os portões do quartel estavam fechados sem nenhum "gorducho" de sentinela. Não era hábito.
Fui o primeiro a chegar ao emprego. Não se viam muitas movimentações populares e apenas tinha visto alguns (já não me recordo quantos) Guarda Republicanos na esquina da Rua da Condessa em posição de defesa.
Quando o encarregado abriu a oficina e me viu a surpresa estava-lhe nos olhos. A partir daí foi a azáfama de quem não sabe o que fazer. Se desse para o torto estávamos numa situação complicada e perigosa, mas veio a "ordem de cima" para fecharmos as portas e ir cada um para sua casa. Era o ias...
Lembro-me da tomada do Largo do Carmo com muita gente em cima dos tanques. Eram quase onze horas da manhã. Entretanto, afluiam mais populares em todas as zonas limítrofes da área circundante ao acontecimento e lá estava eu, endiabrado e saltitante, entre jornalistas, militares e gente anónima.
Percorremos bastas vezes a Rua da Trindade - onde ficava o República - o Largo da Misericórdia, a Rua do Alecrim, o Camões, o Chiado e a António Maria Cardoso, voltando ao Carmo como se já soubéssemos que era ali o nosso lado.
Depois disso, toda a gente sabe o que aconteceu. O confronto visual das tropas do Movimento com uma companhia da Guarda Republicana mesmo ali nas minhas barbas. O heli-canhão que pairava por cima das nossas cabeças em sinal de ameaça permanente. O abrir fogo contra as paredes e janelas do quartel do Carmo. Os tiros traiçoeiros do último andar do edifício da D.G.S. que, em pânico, os pides efectuaram para tentar anular o que era irreversível. O Povo estava na rua entre gritos e choros de raivas mal contidas. Sangue jovem derramado pelas pedras da calçada davam ainda mais força à popoluça e incentivava os militares. Vivas e abraços misturados com o perfume dos cravos vermelhos que floriam na ponta das espingardas. Tanques, tiros e medos. Rádios nos ouvidos, jornais, muitos jornais, e bandeiras de Portugal nas mãos. Os discursos e as ordens nas vozes libertadoras dos soldados ouvidas nos megafones. As canções proibidas, os rostos conhecidos, os mantimentos distribuídos, os cartazes rasgados. E o Poder, por fim, caiu!
Foi um dia, trinta anos atrás, mas não era uma quinta-feira qualquer.

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