31.10.06



Estou farto *

Estou farto que me digam que não presto. Farto de servir a vilanagem e dar comer aos burros que escoiceiam quando me vêem. Estou farto dos mandantes, dos algozes, de estudantes, e da merda desta vida que me deram. Estou farto!

Depois de dias a trabalhar arduamente num projecto sem importância, quedo no quebrado espelho à minha frente o meu olhar de espanto. O meu corpo, curvado de amargos anos, perdeu juventude e o juízo. Também o senso e os postiços dentes que me custaram uma fortuna. Os anéis foram-se igualmente nas enxurradas dos romances e dissabores mal amanhados a que nunca soube resistir. Os meus olhos claros de castanho marcam pupilas embriagadas de lugares castiços onde me perdi noites sem fim. E as rugas, estas rugas debaixo deste pescoço cansado e esguio, são a prova disso e estou farto.

Farto de alternativas partidárias, de capítulos abertos ao futuro, do sucesso indicador dos outros gajos, da lucrativa pose das bruxas, anti-cristos e outros futebóis.
Já não tolero nem consigo perceber o mundo onde nasci. Já não entendo o nuclear, o militar e as relações bilaterais. Já não tolero mais promoções, revoluções e novos rumos petrolíferos. Sabem-me a folhas secas onde cacarejam as galinhas, a ramos partidos onde mijam sete cães, a terrenos lamacentos onde cagam os porcos todos.

Abomino e desgraço o dia em que nasci sem fortuna exposta. Estou farto dos dias de poupança, dos dias de trabalho extra e da má aventurança que anda atrás de mim. Já não consigo olhar de frente a mulher que me pariu. Já não consigo amar a mãe que me deu filhos. Já não consigo sustentar tanta boca faminta em meu redor. Estou farto! Farto de abortos e arautos da desgraça. Farto que me indiquem o caminho. Que digam cheguei tarde. Que pisei o risco. Que cuspi no chão. Que estive a falar para o boneco.

Estou farto!


* nota do editor: catalogado como ficção e inspirado num anúncio do óleo Fula. De resto, estou muito bem e recomendo-me, hehe...

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