16.10.05



... e há bocadinhos na vida que me fazem bem. Mesmo que me tirem do sério.

Depois de ter realizado as três obrigações primordiais a um homem que se preza - digo eu - (fazer um filho, plantar uma árvore e escrever um livro), vejo-me na contingência de realizar uma que ainda não fiz: um relato.

Um relato deve ser coisa de gente que sabe o que diz e que por vezes pode virar tragédia (estou a lembrar-me do emissário de Marathon). No entanto, após ter trabalhado para malandros, carregado baldes de argamassa e levantar-me às cinco da matina para andar a lavar vidros, já nada me assusta. Portanto, aqui vai.

O país parou para assistir a mais um clássico. Daqueles clássicos onde os smokings são substituídos por obscenidades, dúbias intenções e úteis esquecimentos. Um Porto-Benfica, ou vice-versa, arrasta paixões. Ódios de estimação e muitas, mas mesmo muitas, bandeiras. Cachecóis, retratos de família e opiniões. Acima de tudo, pessoas. Muitas pessoas.

Imaginei-me uma delas a cantar os “Filhos do Dragão” trocando a letra pela trova do “Ser Benfiquista” olhando nos olhos de todos quantos me rodeavam. Ali não há contemplações nem classes sociais. Nascemos todos nus com a faca na algibeira.
A cada centro de Lisandro Lopez ecoava um apelativo bruah em detrimento do aumento da electricidade. Por cada queda de Simão gritava-se “filho da puta” para poder contestar as baixas reformas de toda aquela gente. Cada defesa de Quim assemelhava-se a mais uns dias de férias repartidas e à prevenção das catástrofes naturais.

Um gajo na minha idade, e senilidade, até que vive estas merdas todas. Ao vivo e a cores, como imaginei, ainda é mais fixe. Como o Soares.
Tanto assim, que a cada correria iniciada do puto Nelson pelo corredor direito fazia com que me esquecesse que amanhã já é 2.ª feira. Cada drible do Jorginho deixava no ar a ideia de que vou ser aumentado e por cada posse de bola ganha por Diego ou Karagounis transformava-me no mais acérrimo defensor dos Direitos Humanos e dos Animais.

Trânsito caótico? Taxas suplementares pelo consumo de bens de primeira necessidade? Falta de médicos e a Justiça em palpos de aranha? , o que é isso comparado com o primeiro golo do Benfica? Nada!
Os problemas da fome em África, a miséria e o desemprego a aumentar, eram debelados por cada defesa de Baía. A violência, a poluição ambiental e a vontade férrea de dar um estalo nesta vida que levamos era completamente esquecida por cada jogada habilidosa de Diego ou Geovanni.

Esquecemos totalmente os sem-abrigo, as vítimas das estradas nacionais e a pequena Joana, com o segundo golo do Nuno Gomes. A corrupção e o processo Casa Pia. O aborto. O arrastar desta vida que não queremos, mais a diferença galopante entre a escassez de uns e o esbanjamento de muitos outros.

Mas ganhámos!
Mesmo que a vontade de mostrar os lenços brancos não fossem para aqueles gajos que nos fazem esquecer momentaneamente coisas destas. Acho que temos que fazer como os gajos do Sporting : para nos fazer-mos ouvir perante tanta cegueira é melhor levar lençóis.
Quem sabe, até a própria cama?
Ou os filhos, os netos, e a folha de ordenado.
Quiçá, a declaração da Assistente Social.

Uma boa semana a quem passar por aqui. Aos outros também, claro.

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