23.2.05



Papelinhos guardados na gaveta (com dedicatória)

Por vezes, fico perdido em recordações temporais de dias e noites que nunca mais regressam. Vivo em conversas trocadas sem sentido. Filosofias vãs que aniquilam a oportunidade de me voltarem a encontrar.
Mas os tempos, hoje, são diferentes.
As noites continuam a ter a lua como horizonte, mesmo não acompanhando o ritmo frenético da minha juventude. Os sons que oiço não perdem o brilho de todos os bancos de jardim e os espaços... esses espaços tão meus, continuam feitos no timbre artesanal do meu lado quedo da nostalgia. Da silenciosa esquina que reparto com flores. Flores essas que devem ter o seu próprio odor. Tão próprio como as cores que perpetuam o seu nome.

Agora é tempo de redescobrir as noites inventadas por crianças. Dias menos agrestes que me façam amar e rir, até que volte a anoitecer. Daqueles que iludem e deixam rastos. Que me indicam os caminhos para reduzir o outro lado da vida e da má sorte. Que deixam as cinzas apagadas dos cigarros que fumei.

Embriagando-me nesse odor, posso ver menos tragédias e ventos impelidos por desgraças. Posso ver partes iguais naqueles que nascem mais de perto. Posso ter até, diversas maneiras de sentir. É a própria vida que me ensina todos os dias. Pois “se há gente que encara a tristeza a rir", diz o poeta, "existem muitos outros que choram de alegria” .
Por isso, da minha janela ainda vejo o mar. Esse mar que me leva longe sem daqui sair. Mas que tranquiliza e me afaga. E me afoga em delírios trementes de ilusão.

Para quem tem pela frente uma vida dura e pintada em vários tons, viver sempre em função dos dias e das horas que passam vigorosas não é bom. Muitas delas lentas e difíceis, outras incrivelmente rápidas e decisivas.
Daí que, para além dos filhos e netos que já tenho, mais não deixo que a minha própria estória de ninguém. Que nunca escrevi. Mas que está inscrita onde só eu sei.

Talvez por mágoa, talvez por medo, pela angústia do dia de amanhã, se torne a máscara de mim e de todos os momentos. Pode ser até a sina minha, o meu fado, o egoísmo de todas as coisas e o terminal dos meus sonhos cor-de-rosa na esperança de que existe sempre, algures, um mar abandonado que me pode voltar a descobrir. Mesmo que seja nas areias dum rio que nunca encontra a foz, terei sempre perto de mim os trabalhos forçados atribuídos a um crime que nunca pratiquei. Mas que condena. Numa condenação a mais para um homem só.

Mas por amor, serei capaz de tudo. Até deixar de amar.

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