17.1.05



A falta de assunto

Quando assim pensei, notei que a mim próprio me enganava.
A falta de assunto, só por si, já é assunto. Vesgo e parvo, desinteressante e vago, mas é assunto. Tão bom ou melhor do que qualquer outro por onde o mar nos leva.

Bem posso socorrer-me, de entre outros, da Língua Portuguesa.
Essa pátria tão maltratada, e mal tratada, nos seus mais recônditos segredos. “Essa a língua em que por acaso de gerações nasci..."
Ou, melhor podia optar por Torga, o maldito, que “nem sempre escreveu que era intransigente e duro, capaz de uma lógica que toca a desumanidade. (...) e que nem sempre admitiu que estava irado com este camarada e aquele amigo. (...) tal a desgraça de nunca o deixarem estar só, pensar só, sentir só.”
Ou até mesmo de Cervantes. Ilustre andante Cavaleiro em que “ não havia medo em nada e de ninguém” e afirmava aos áureos ventos em generoso acto, que “se nos ladram é porque cavalgamos” e somos “o casto ardor de uma amorosa chama”.

Falta de assunto?
Falta assunto a quem é morto. Jaza cadáver. Frio, enregelado já, pela longa espera da mortalha a quem a “palavra que me lavra, alfaia escrava, de mim próprio matéria bruta e brava, é expressão da multidão que está comigo”. Falta de assunto?
Não!

Sei de Martinus e Adriana Iliescu,
mais Titã e os sons do infinito.
Sei do tremor da terra
e o flagelo sombrio e nu
que me traíu
e que me cega.
O castigo ténue,
o labirinto,
e a palavra vã.
Sei o tom deste ciclo
que não encerra.
Sei da raiva,
da vida pela manhã,
incontida,
foragida,
em vários credos
atravessada,
pela parca
e pobre Liberdade
adulterada
nos dias e horas que atravesso.
Sei de mim.
Do Mundo.
De ti
e do Mar calmo ao seu regresso.
Sei do poeta
e do amigo.
Por isso,
e sem desculpa,
faltar assunto
é coisa que eu não digo.

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